Big Yellow Taxi

Renata Py
4 min readFeb 20, 2019

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Estava na cidade há dois dias apenas e mal me comunicava com alguém. Nova York é dessas cidades que metem medo, pela quantidade de informação visual, pelo número de pessoas zanzando, pelo trânsito caótico. São tantas energias misturadas interferindo umas nas outras. Para ajudar, chovia muito, aquele tipo de clima que parece que nunca vai mudar.

Ao entrar num taxi encostado na calçada, me dei conta de um senhor sentado lá dentro. Olhou para mim, um pouco surpreso com a ousadia, enquanto soltava uma baforada de fumaça pela janela. Mandei um sorry tímido, abrindo a porta para sair, quando ele me pegou pelo braço e pediu que eu ficasse. Foi nesse momento que, espantada, dei de cara com aquele olhar caído. Aquelas vestes, o jeito blasè. Nem por milhões de anos conseguiria sair daquele veículo após me dar conta de quem segurava meu braço.

O motorista perguntou para onde íamos. Nessa altura eu não conseguia manifestar nem um tipo de reação. “52 W 8th St”. Eu não conhecia a cidade, não conheço direito até hoje, mas pelo endereço eu sabia muito bem onde ele estava me levando. Só conseguia imaginar que estava ficando louca, será que algum membro da minha família já tinha sofrido de esquizofrenia? Bom, se aquilo tudo fosse realmente algo do meu imaginário, era melhor ser vivido.

Ele começou a contar todos os tipos de histórias com aquela voz emblemática. Me ofereceu uísque numa garrafinha de metal, me deu um trago do seu cigarro de palha, mostrou rabiscos para uma nova composição, contou sobre quando imitou Little Richard numa apresentação de escola em Minnesota, como tinha sido seu encontro com Barack Obama. Falava pelos cotovelos. Eu ouvia, item por item de suas histórias surreais. A chuva insistia, o trânsito não andava e eu bolava mais um cigarro de palha a pedido dele. Em um determinado momento, talvez por educação, ele resolveu perguntar sobre mim. Quem eu era? O que eu fazia? Nem sabia o que dizer, quase respondi: “Amigo, não sou ninguém”. Um encontro como esses faz você ter a perversa consciência de si mesmo. Ou seja, que você não representa muita coisa nesse mundão. Modestamente — que nessa situação não caberia me faltar — respondi que era uma escritora metida a jornalista. Seus olhos azuis, contrariando os traços da idade, cresceram e me miraram sorridentes. Me chamou de inimiga e riu alto. Falei que ele não precisava se preocupar com isso. Ele retrucou, escritores não têm alma própria e pertencem ao todo e a todos. E que há muito não se preocupava com mais nada.

Enfim chegamos na 52 W com 8th St, ele pagou o taxista e pegou um violão no bagageiro. Eu não sabia se continuava no táxi para ir ao meu passeio de lá de trás, se eu gritava para ver se acordava de um sonho que jamais deveria terminar, se pedia mais um gole de uísque ou se corria atrás de um psiquiatra. Foi quando ele abriu a porta, meio mal-humorado, Come on.

Entramos por uma porta espelhada de moldura redonda. Pelo reflexo, pela primeira vez, me dei conta mesmo de quem estava ao meu lado. Mas era tarde para emoções de quem enxerga o mundo por posters na parede do quarto. Ele já tinha dividido comigo seu cigarro de palha e histórias da infância. Robert falou então com um jovem atendente, que nos levou para uma grande sala com tapetes e pianos. Ele confessou que já havia estado ali com Jimmi e Patti Smith inúmeras vezes e que não existia um dia sequer em que não tenha sentido a presença do rei das guitarras. Eu arrepiei. Duas lendas desse nível num mesmo local, mesmo que uma em espírito, era demais para atestar algum tipo de sanidade na minha cabeça.

Ele me mostrou uma poltrona confortável, se acomodou em um banco estiloso e tocou com seu velho violão a composição que havia me mostrado minutos antes. Inédita, para mim e o resto do planeta. Fiquei horas observando o mestre ensaiar. Não sei bem quando, ele gentilmente me acordou. Eu não entendia como ainda poderia estar ali. Sonada, resmunguei qualquer bobagem, ao que ele respondeu: ”The ancient empty street’s too dead for dreaming, Take me on a trip upon your magic swirlin’ ship. I’m ready to go anywhere, I’m ready for to fade. Girl, play a song for me.”*

* A antiga rua vazia está muito morta para sonhar, leve-me em uma viagem no seu navio mágico. Estou pronto para ir a qualquer lugar, estou pronto para desaparecer. Garota, toque uma música para mim “.

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Renata Py
Renata Py

Written by Renata Py

Autora dos livros: Firmina (Laranja Original, 2019) e Safira com Alabastro (Laranja Original, 2022).

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